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J. W. Goethe
Naquele tempo era o Kaos
E as palavras do poema não irrompiam já como palmeiras
País perdendo dia a dia o seu rosto:
farejando o lixo -
De cada coisa a beleza destroçada
Navegou e de noite e lentamente
Como em longínquo cismar adolescente.
Homem virtual
Comprou um alfinete para a gravata
oferecida pela mãe no dia do enterro
acordou ao lado de uma almofada
lançou os olhos nos dígitos intermitentes
do medidor electrónico do tempo
vestiu-se à pressa para o atraso remediar
com duas tostas e um copo de leite magro
restou-lhe tempo para esquecer a escova
de dentes ao lado do dentífrico sabão azul
indicado para lábios queimados
pelo excesso de químicos
pegou na pasta preta para papéis brancos
de assassinar com assinaturas e partiu
no corredor que dava acesso ao elevador
cruzou-se com sonâmbulos
pintando na cara os gemidos da noite passada
a um "bom dia" respondeu sempre igualmente
dois passos hesitantes para a chuva que teimava cair
e escorregou na lama que teimava tropeçar
nas solas dos sapatos que o calçavam
regressou temporário a casa
com nódoas na camisa engomada de fim de semana
mudou de corpo e seguiu viagem
atropelou um camião que era transporte de ferro
ferrou os dentes na língua
aguardou paciente na paragem cardíaca
o autocarro que por certo avariara
sem aviso prévio no gravador de chamadas
ou na tabuada dos horários
que ficam sempre por cumprir
chamou um taxi para o desemprego
e pagou uma mão cheia de pressas
uma canção de embalar insónias
e a loucura de viver sem mistério
foi tudo o que almejou do patronato
puxou da agenda e marco do correio
na cabina telefónica consulta para dois
para ele e para o que em si gostaria de ser
marcou o número da análise
esperou por si à porta do inferno
mandou em jeito de ordem o diabo à merda
«deus é um carteiro atrasado
sem correspondência que me anime», gritou
mas a Ele agradava um soco
de deixar inchaço no olho
recentemente a vida é-lhe feita de um cigarro
antes da sessão de cinema
um café depois do sono
um vodka antes da cama vazia
não anda mal mas podia andar melhor
Henrique Manuel Bento Fialho, em " Antologia do Esquecimento"
E eu, tantas vezes reles, tantas vezes porco, tantas vezes vil,
Eu tantas vezes irrespondivelmente parasita,
Indesculpavelmente sujo,
Eu, que tantas vezes não tenho tido paciência para tomar banho,
Eu, que tantas vezes tenho sido ridículo, absurdo,
Que tenho enrolado os pés publicamente nos tapetes das etiquetas,
Que tenho sido grotesco, mesquinho, submisso e arrogante,
Que tenho sofrido enxovalhos e calado,
Que quando não tenho calado, tenho sido mais ridículo ainda;
Eu, que tenho sido cómico às criadas de hotel,
Eu, que tenho sentido o piscar de olhos dos moços de fretes,
Eu, que tenho feito vergonhas financeiras, pedido emprestado sem pagar,
Eu, que, quando a hora do soco surgiu, me tenho agachado
Para fora da possibilidade do soco;
Eu, que tenho sofrido a angústia das pequenas coisas ridículas,
Eu verifico que não tenho par nisto tudo neste mundo.
Toda a gente que eu conheço e que fala comigo
Nunca teve um acto ridículo, nunca sofreu enxovalho,
Nunca foi senão príncipe - todos eles príncipes - na vida...
Quem me dera ouvir de alguém a voz humana
Que confessasse não um pecado, mas uma infâmia;
Que contasse, não uma violência, mas uma cobardia!
Não, são todos o Ideal, se os oiço e me falam.
Quem há neste largo mundo que me confesse que uma vez foi vil?
Ó príncipes, meus irmãos,
Arre, estou farto de semideuses!
Onde é que há gente no mundo?
Então sou só eu que é vil e erróneo nesta terra?
Poderão as mulheres não os terem amado,
Podem ter sido traídos - mas ridículos nunca!
E eu, que tenho sido ridículo sem ter sido traído,
Como posso eu falar com os meus superiores sem titubear?
Eu, que tenho sido vil, literalmente vil,
Vil no sentido mesquinho e infame da vileza.
Álvaro de Campos
Trago-te em mim
Mesmo que chova no verão
Queres dizer sim, mas dizes não
Vamos fazer o que ainda não foi feito
E eu sou mais do que te invento
Tu és um mundo com mundos por dentro
E temos tanto pra contar
Vem nesta noite
Fomos tão longe a vida toda
Somos um beijo que demora
Porque amanhã é sempre tarde demais
E eu sei que dói
Sei como foi andares tão só por essa rua
As vozes que te chamam e tu na tua
Esse teu corpo é o teu porto, é o teu jeito
Vamos fazer o que ainda não foi feito
Sabes quem sou, para onde vou
A vida é curva, não uma linha
As portas que se fecham e eu na minha
A tua sombra é o lugar onde me deito
Vamos fazer o que ainda não foi feito
E eu sou mais do que te invento
Tu és um mundo com mundos por dentro
E temos tanto pra contar
Vem nesta noite
Fomos tão longe a vida toda
Somos um beijo que demora
Porque amanhã é sempre tarde demais
Tens uma estrada
Tenho uma mão cheia de nada
Somos um todo imperfeito
Tu és inteira e eu desfeito
Vamos fazer o que ainda não foi feito
E eu sou mais do que te invento
Tu és um mundo com mundos por dentro
E temos tanto pra contar
Vem nesta noite
Fomos tão longe a vida toda
Somos um beijo que demora
Porque amanhã é sempre tarde demais
Vem nesta noite
Fomos tão longe a vida toda
Somos um beijo que demora
Porque amanhã é sempre tarde demais
Porque amanhã é sempre tarde demais
Porque amanhã é sempre tarde demais
Porque amanhã é sempre tarde demais
Preciso ser um outro
para ser eu mesmo
Sou grão de rocha
Sou o vento que a desgasta
Sou pólen sem insecto
Sou areia sustentando
o sexo das árvores
Existo onde me desconheço
aguardando pelo meu passado
ansiando a esperança do futuro
No mundo que combato morro
no mundo por que luto nasço
Mia Couto
Pouco importa o julgamento dos outros. Os seres são tão contraditórios que é impossível atender ás suas demandas, satisfazê-los. Tenha em mente simplesmente ser autêntico e verdadeiro...
Dalai Lama1
Todos os dias os ministros dizem ao povo
Como é difícil governar. Sem os ministros
O trigo cresceria para baixo em vez de crescer para cima.
Nem um pedaço de carvão sairia das minas
Se o chanceler não fosse tão inteligente. Sem o ministro da Propaganda
Mais nenhuma mulher poderia ficar grávida. Sem o ministro da Guerra
Nunca mais haveria guerra. E atrever-se ia a nascer o sol
Sem a autorização do Führer?
Não é nada provável e se o fosse
Ele nasceria por certo fora do lugar.
2
E também difícil, ao que nos é dito,
Dirigir uma fábrica. Sem o patrão
As paredes cairiam e as máquinas encher-se-iam de ferrugem.
Se algures fizessem um arado
Ele nunca chegaria ao campo sem
As palavras avisadas do industrial aos camponeses: quem,
De outro modo, poderia falar-lhes na existência de arados? E que
Seria da propriedade rural sem o proprietário rural?
Não há dúvida nenhuma que se semearia centeio onde já havia batatas.
3
Se governar fosse fácil
Não havia necessidade de espíritos tão esclarecidos como o do Führer.
Se o operário soubesse usar a sua máquina
E se o camponês soubesse distinguir um campo de uma forma para tortas
Não haveria necessidade de patrões nem de proprietários.
E só porque toda a gente é tão estúpida
Que há necessidade de alguns tão inteligentes.
4
Ou será que
Governar só é assim tão difícil porque a exploração e a mentira
São coisas que custam a aprender?
Bertolt Brecht