Homem virtual
Comprou um alfinete para a gravata
oferecida pela mãe no dia do enterro
acordou ao lado de uma almofada
lançou os olhos nos dígitos intermitentes
do medidor electrónico do tempo
vestiu-se à pressa para o atraso remediar
com duas tostas e um copo de leite magro
restou-lhe tempo para esquecer a escova
de dentes ao lado do dentífrico sabão azul
indicado para lábios queimados
pelo excesso de químicos
pegou na pasta preta para papéis brancos
de assassinar com assinaturas e partiu
no corredor que dava acesso ao elevador
cruzou-se com sonâmbulos
pintando na cara os gemidos da noite passada
a um "bom dia" respondeu sempre igualmente
dois passos hesitantes para a chuva que teimava cair
e escorregou na lama que teimava tropeçar
nas solas dos sapatos que o calçavam
regressou temporário a casa
com nódoas na camisa engomada de fim de semana
mudou de corpo e seguiu viagem
atropelou um camião que era transporte de ferro
ferrou os dentes na língua
aguardou paciente na paragem cardíaca
o autocarro que por certo avariara
sem aviso prévio no gravador de chamadas
ou na tabuada dos horários
que ficam sempre por cumprir
chamou um taxi para o desemprego
e pagou uma mão cheia de pressas
uma canção de embalar insónias
e a loucura de viver sem mistério
foi tudo o que almejou do patronato
puxou da agenda e marco do correio
na cabina telefónica consulta para dois
para ele e para o que em si gostaria de ser
marcou o número da análise
esperou por si à porta do inferno
mandou em jeito de ordem o diabo à merda
«deus é um carteiro atrasado
sem correspondência que me anime», gritou
mas a Ele agradava um soco
de deixar inchaço no olho
recentemente a vida é-lhe feita de um cigarro
antes da sessão de cinema
um café depois do sono
um vodka antes da cama vazia
não anda mal mas podia andar melhor
Henrique Manuel Bento Fialho, em " Antologia do Esquecimento"
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