quarta-feira, 1 de abril de 2009

Hoje apanhei dois nomes do chão. Chamavam-se Roberto e Afonso e estavam espalhados pelo chão da sala.

Hoje, dizia, apanhei o Roberto e o Afonso do chão e guardei-os um pouco junto a mim. Antes de tudo o mais, de os levar para a varanda e lá os deixar naquele vaso, pego neles e abraço-os junto ao peito. Sento-me no sofá, olho os quadros, olho os livros e enterneço por eles. São dois nomes na minha vida toda: o Afonso com os seus óculos, a sua bonomia, o seu ar atento, sempre atento, a todas as coisas que por ele passam; e o Roberto com a sua madeixa de cabelo loiro tocando a testa, o seu corpo frágil, as suas mãos compridas e o ar distraído com que presenteava sempre os meus olhares. Ambos foram a minha vida. Ambos passaram por mim já junto a este peito onde, agora ternurenta, os abraço. Ambos, como muitos outros que já levei para a terra escura daquele vaso, ambos foram carne com a minha carne, sussurro com os meus sussurros, brincadeira com as nossas brincadeiras. Ambos foram já tanto parte de mim que me é difícil abraçá-los sem os sentir demasiado dentro. Mas é uma necessidade, uma despedida. Depois de os lançar ao chão da sala, levanto-lhes o corpo que cada nome tem e, num último adeus, dou-lhes o encontro com o meu peito. Porque é sempre preciso sentir o cheiro que estes nomes nos dão na memória antes de os deixar para sempre na terra tão escura e fria que aquele vaso, na varanda, à noite, ampara.

E estou em casa, com o casaco de malha ainda vestido porque o frio entra com a noite quando abrimos a porta que nos leva à varanda. Depois de ouvir mais um nome na varanda (ouço-os sempre na voz que é a deles, chamando-me; mas resisto e entro para a sala) deixo as portas já trancadas e entro em casa. Os meus pais devem estar a chegar e esta solidão será daqui a pouco acompanhada. A casa vazia encher-se-á deles e estes papéis espalhados no chão da sala não serão problema. Nunca são. Porque sou ainda pequena e eles, com os seus nomes de pais, acabam desculpando-me tudo. Porque sabem que mesmo uma criança como eu já precisa de ter um vaso dos nomes onde deixar as pessoas que vão passando pela nossa vida.

Jorge Reis Sá em "O vaso dos nomes"

5 comentários:

JC disse...

Agora andas a encher chouriços.
Beijocas

Leticia Gabian disse...

Que texto lindo, Isabel!
Quem não tem o seu próprio vaso de nomes?
Olha que o meu já está cheio quase à boca...E hoje, por acaso, acordei com alguns junto ao meu peito, também...

A CONCORRÊNCIA disse...

Todos os dias os temos junto ao peito né Letícia ? é bem dificil conseguirmos deixá-los lá fora na varanda, dentro do vaso ...

Beijos

Joana Correia disse...

Quem trago sempre junto ao peito é a minha família. No meu vaso estarão para sempre a mãe, o pai e o mano!!!

Maria disse...

Quando te comecei a ler pensei "quem serão estes gajos", depois fui ao fim do texto e percebi...
Vim para aqui para dormir e afinal são quase 5 da manhã... já fiz tudo o que tinha que fazer. Amanhã e sexta vou "encher chouriços", pois claro...